quarta-feira, 1 de junho de 2011

ISTO NÃO É ARTE - 18

Antes de ler este artigo, convém consultar:

http://profciriosimon.blogspot.com/2010/10/isto-nao-e-arte-01.html

O FAZER não é ARTE.

O tumulto, no qual o artista contemporâneo vive, o instiga a distinguir o FAZER do AGIR. Esta distinção, e as razões para esta separação, surgem em especial diante da pós-modernidade. Nesta pós-modernidade Marcel Duchamp (1887-1968) torna-se cada vez mais paradigmático na sua negação do FAZER pelo FAZER. Ele não queria passar a imagem de que estava praticando algo que poderia ser confundido com arte e parecer estar jogando apenas para a torcida.


Fig. 01 – Marcel DUCHAMP – “O Grande Vidro”. Ou “ A noiva despida pelos seus pretendentes” numa metáfora dos dependentes da máquina

Para o artista a distinção entre o FAZER e o AGIR permite separar o “FAZER-TRABALHO” do “AGIR-OBRA”. Os produtos resultantes do TRABALHO e do FAZER são consumidos pela obsolescência, além de ambos serem penosos e os seus autores serem consumidos junto com eles.


Fig. 02 – Marcel DUCHAMP diante da “A Roda da Bicicleta sobre Banco”.

Ao contrário os produtos da OBRA e do AGIR, permanecem e são coerentes e conseqüentes com o ente do indivíduo no se ser no seu lugar e no seu tempo. A OBRA e o AGIR projetam para além do tempo, carregando o máximo de conteúdo no mínimo de sua forma, nesta viagem entre civilizações e culturas alem de serem portadores do melhor dos seus autores.

A OBRA de ARTE é uma encarnação em formas sensíveis que contém um pensamento que permanece, se multiplica e é competente para anexar, e anexar-se a outras infinitas obras.

“Produzidas numa esfera específica, num campo que possui regras, concepções, hierarquias, as obras escapam e tomam densidade, peregrinando, muitas vezes na longa duração, através do mundo social. São uma fonte para pensar o essencial: a construção do vínculo social, a consciência de si mesmo, a relação com o sagrado”. Chartier, 1998 : 98


Fig. 03 – John CAGE famoso pela sua obra “4,33..” de 1952. O músico permaneceu silencioso e estático diante do piano ao longo 4 minutos e 33 segundos, caracterizando o AGIR (silencioso e estático) e contrariando a expectativa do publico que esperava dele o FAZER (sonoro e ativo).

Na medida em que o artista criador abandona o território da OBRA e do AGIR, este artista corrompe as suas ações e resvala para o FAZER. Comandado por este FAZER ingressa no mundo das forças do artesanato, dominado pelo trabalho, pela obsolescência e pela entropia da Natureza bruta.

“OBRA: é obra de Eris a deusas da luta salutar. O TRABALHO segundo a mitologia saiu da caixa de Pândora, castigo de Zeus contra Prometeu, «o supliciado», que o havia enganado. O FAZER é determinado pelas categorias do fim e dos meios. O objeto fabricado termina duplamente nele mesmo: o processo se conclui na sua produção e ele apenas existe para esse fim.” Arendt, 1983 : 41


Fig. 04 – Robert SMITHSON (1938-1973) - LAND ART - Espiral de Terra - 1970

Na pós-modernidade o trabalho se multiplica e aliena o artista. Reduzido à condição de artesão, oa artista criador está entregue á lógicas das máquinas, dos equipamentos e dos sistemas comandados por programas, sobre quais ele possui um acesso limitado e sempre na heteronomia. Esta lógica dos sistemas e equipamentos, programados por seus criadores, sem que o artista tenha acesso ou controle á sua fonte, competências e malícias.

Trabalhar significa sofrimento e infelicidade. A palavra trabalhar, que substituiu laborar, vem de tripalium, um instrumento de suplício. Em alemão Arbeit era o trabalho do campo, enquanto dos artesões era Werk. O grego distingue ponnein de ergaszesthai, o latim laborare de facere ou fabricare, o inglês labor de work” Arendt, 1983 : 124.

O preço da confusão, entre o FAZER e o AGIR, significa a diminuição - ou até a perda - da autonomia tão arduamente conquistada pela Arte ao longo do histórico da contemporaneidade. Sob o tema "A estética da singularidade". Fredric Jameson afirmou, em Porto Alegre, no dia 23 de maio de 2011, que

"No pós-modernismo, a arte regride a uma espécie de artesanato. Não tem a ver com estilo porque não resiste à supressão do individual [...] política, economia e arte se movimentam em busca da capacitação de métodos em vez de procurar por significados, forma e estilo.


Fig. 05 – Joseph BEUYS o mestre dos “desafios” do AGIR de toda ordem.

A busca de significados, de forma e de estilo, é indiferente ao FAZER. A fabricação de uma ferramenta - ou de um engenho - pode servir tanto para o bem como para o mal. O domínio da energia nuclear, a decodificação do código genético ou os milionésimos de cálculos realizados numa fração mínima de tempo ... são indiferentes, por sua natureza, a qualquer sanção moral. Eles ganham esta dimensão na medida em que seu uso faz parte e integra um projeto humano. A forma deste uso impõe a dimensão ética, moral e socialmente defensável no contexto de uma civilização. A coerência entre este uso e a forma constitui o estilo. A intervenção do indivíduo cria estilo na medida em que este indivíduo é competente em deliberar e decidir.


Fig. 06 – Joseph BEUYS – “Piano e Rolos de Feltro” instalação.

Vencida esta etapa, o autor libera a sua obra ao mundo.

A obra de arte é um documento histórico na medida em que revela a sua historicidade do homem com a sua visão limitada do mundo e sua gama limitada de expressão. O ser humano, pela apropriação artística do mundo, não perde o contato com ele, mas o contrário, faz-se o seu testemunho”. Gleizal, 1994 : 49

A OBRA sobrevive nesta autonomia na medida do seu status é ostentado num estilo definido, unívoco e pessoal. A OBRA, resultante do AGIR conquista este estilo. Assim Mazzocut-Mit escreveu (1994 : 60) que

A obra de arte é uma posse durável e duradoura do objeto artístico e que consegue fixar, de alguma forma, o encantamento fugidio que nos mostra e nos faz acreditar naquilo que não reside nos objetos e nem nos sentidos”.

Com este encantamento a Arte está apta, e por meio dos seus recursos, para encontrar-se e interagir com os seus observadores, de adquir independência e se reproduzir por ela mesma levando junto nesta viagem sem fronteiras e por tempo indeterminao, o melhor do seu autor.

Reguera afirma (1994, p.137), interpretando Wittgenstein, que obra de arte é um objeto liberado, sereno e feliz, que resplandece sobre o panorama do universo inteiro distanciado de todas as viscosidades de sua espessura fática. A obra de arte é uma ficção e uma ficção é uma projeção do real no mítico, que dizer , do temporal no eterno”. In Belting in Gleizael, 1994: 49.

No entanto a Arte não despenca no imponderável e nas nuvens em consequência de sua autonomia. A sua sobrevida está garantida na medida em que as instituições garantem a sua permanência no mundo ao resguardo da entropia da Natureza. Trata-se da consequência da ação do criador em gerar os observadores de sua obra, pois ele está consciente do novo que ele está apresentado e acrescentado à uma determinada civilização.


Fig. 07 – Andy WAHROL (1928-1987) recuperou as lições da Marcel Duchamp e outros, traz para os seus observadores coisas encontradas e prontas (objects trouvés - readymades)que ele apenas deslocava para o universo e ambientes de consagração da arte.

http://en.wikipedia.org/wiki/Found_art

Chartier escreveu (1998 : 97) que a obra de arte é o produto de uma negociação entre um criador, as instituições e as práticas da sociedade”. Nesta observação consta o fundamento do direito autoral do artista. Enquanto o produto do trabalho e do artesanato são vendidos, e uma vez pagos, aceitos e cumprido os contratos de compra e venda, cessa qualquer momento de criação e de permanência viva como uma obra de Arte.

A obra de Arte face a esta negociação, contrato e transito, Recht afirmou (1998 : 8) distinguindo:

mais que o artista é obra da arte que se emancipa. A autonomia da obra de arte irá do seu caráter funcional de objeto de culto, fazendo-a entrar na economia de mercado, subindo ao estatuto de objeto de coleção particular e num terceiro momento, como obra de arte, se destina à coleção pública, à instituição patrimonial e ao museu”. e Pedrosa, 1986 : 17

Nesta “negociação entre um criador, as instituições e as práticas da sociedade a Arte e o artista conquistaram o seu lugar na universidade contemporânea. No entanto, Arte e artista, tiveram de prestar "vestibular" para ingressar na Universidade. Neste "vestibular"a Arte teve de provar que as suas pretensões iriam muito além do TRABALHO e do FAZER as pois estes eram competências das oficinas, dos institutos técnicos, das academias e dos conservatórios.


Fig. 08 – Andy WAHROL a lata de sopa em serigrafia constitui uma das coisas encontradas e prontas (objects trouvés - readymades) que o artista deslocou para o universo e ambientes de consagração da arte.

http://en.wikipedia.org/wiki/Found_art

Quando Leonardo da Vinci formulou a questão que “um quadro é coisa mental” estava dando o primeiro giro da chave que abriria, depois ao artista e para a Arte, as tradicionais portas da universidade. Este ingresso separava o artista dos criados que serviam a mesa e o colocava no âmbito dos convidados ao banquete e em igualdade das outras profissões que formam e modelam uma civilização.

Contudo o pensamento clássico grego mais elevado já fazia estas distinções e conferia ao artista um status separado. Assim encontramos em Platão (1985, 2º vol, 221) de que:

Há três espécies de camas: uma que existe na natureza das coisas e da qual podemos afirmar, penso, que Deus é o autor, de contrário quem seria?...

-Ninguém mais a meus ver.

- A segunda é do marceneiro.

-Sim

- E a terceira, a do pintor, não é/

- Seja

Assim, pintor, marceneiro, Deus, são três que presidem a fatura das três espécies de camas


Fig. 09 – Joseph KOSUT – “As três cadeiras” o arista norte-americano retoma na contemporaneidade o pensamento de Platão em relação à criação artística. Na cultura ocidental o Verbo (dicionário) é considerado o início e tratado como Deus.

Para conferir a distinção social e cultural, entre o artesão e o artista, Marcel Duchamp insistia para que ao artista deveria procurar a universidade.

Dotado de uma formação universitária, o artista não precisa temer o assalto de complexos nas relações com os seus contemporâneos. Graças a esta educação, ele terá ao seu dispor ferramentas adequadas para opor-se a estas questões materialistas por meio do EU cultivado no quadro dos valores espirituais .Marcel Duchamp in SANOULLET, 1991, pp. 236-239

Ele fazia esta proposta numa cultura pragmática, como a americana, para que artista e Arte tivessem igualdade com outras profissões consideradas de respeito e admiração. No entanto esta presença da Arte na universidade, não se esgota no reconhecimento e no acréscimo do prestígio social, econômico e intelectual conferida ao artista. Na essência a única coisa que em universidade pode ensinar é “o cultivo continuado do hábito da integridade intelectual” na expressão de Max Weber. Neste ponto reside a força do argumento da distinção do FAZER e do AGIR e separar o “FAZER-TRABALHO” do “AGIR-OBRA”. Portanto, neste ingresso do artista na universidade, também está em jogo a dimensão da ética, da moral e da verdade da Arte. Isto é particularmente verdadeiro face ao mundo industrial e a forma como ele trata o trabalho humano na contemporaneidade.

O trabalho resulta como acordos de produção nos quais o central é produto e não os seres humanos que produzem.. Por isso as relações de trabalho não são relações sociais o que possibilita substituir o trabalho pelas máquinas. O desconhecimento do processo é vivido como exploração”. Maturana, 1996 : 15

No lado oposto o ócio nega-se ao trabalho e reluta em se entregar ao PROCESSO vital. O ócio quer logo, e tão somente, o RESULTADO.


Fig. 10 – GILBERT & GEORGE recorrem, num ambiente de consagração da arte, ao próprio corpo para AGIR diante dos seus expectadores.

Em consequência, na medida em que a criatura avança no terreno do ócio, mais sente os efeitos terríveis desta heteronomia. Inclusive sente que o rebanho está pronto para o matadouro. E neste terreno proliferam e pululam os profetas do Apocalipse e do Armageddon final. Basta que estes profetas reforcem o abismo da consciência de eternidade, a inutilidade de qualquer atividade e pensamento humano. Nesta imponderável eternidade “tudo já está escrito” e que devora a todos e a tudo. Diante da eternidade o próprio AGIR perde qualquer sentido.


Fig. 11 – CHRISTO e GUILLEBON Sombrinhas azuis - Japão 1984-91

A maioria das religiões teme a Arte, na medida em que ela pode acender o cultivo do hábito da integridade intelectual dos seus fieis e que, alertados, fogem de sua ortodoxia e dos seus dogmas.


Fig. 12 – O casal CHRISTO Vladimir Javacheff (1935) e GUILLEBON Jeanne Claude Denat de (1935) transformam grandes ambientes urbanos rurais em instalações e que seguia um pensamento e um projeto minuciosamente calculado por eles e executados por empresas e profissionais sob a sua orientação

Aqui vimos uma pequena amostra de como o artista de todos os tempos e os contemporâneos, em particular, viveram, vivem e distinguem o FAZER do AGIR, mesmo no âmbito do maior tumulto e corrupções da arte. Estas distinções, e as razões para esta separação, prometem muitos desdobramentos na pós-modernidade.

Contudo no centro desta busca encontra-se o projeto e a necessária ascese continuada para manter a coerência e a conexão entre a ARTE e a VIDA, sendo ambas gratuitas, imprevisíveis e inesgotáveis.

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http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/artes/0026.html

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JOHN CAGE

http://en.wikipedia.org/wiki/John_Cage

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